Morin: “Antes de indignar-se, é preciso pensar”
Filósofo critica Putin, mas sugere compreender as razões da Rússia contra a OTAN e agir sem histeria. Fiel à ideia de complexidade, teme automatização totalitária, mas aposta: “sempre haverá falhas, por onde surgirão esperanças de salvar o mundo”
Edgar Morin, entrevistado por Frédérique Jordaa e Patrice Moyoin, no France Ouest ! Tradução: Vitor Costa
Aos quase 101 anos, Edgar Morin acaba de publicar um novo livro, Réveillons-nous (“Despertemos”, em tradução literal). Nesta entrevista, o filósofo e sociólogo convida a pensar e compreender as origens da guerra que aflige a Europa. Suas reflexões abrangem também as eleições presidenciais francesas e a vida quotidiana sob as sociedades de vigilância.
Você em breve completará 101 anos. Que lembranças pessoais esta guerra traz de volta?
Edgar Morin – Obviamente penso no que aconteceu em 1939. A França e a Inglaterra declararam guerra à Alemanha após a invasão da Polônia. Mas foi para não irem à guerra. E nós fomos suas vítimas. Pelo menos a situação atual tem o mérito da franqueza. Não queremos ir para a guerra. Esta posição é a realista. Já não estamos numa situação comparável.
Esta é uma situação como não vimos desde o final da Segunda Guerra Mundial?
As pessaos esquecem a sangrenta guerra na Iugoslávia, entre 1991 e 1995. A França interveio militarmente em 1992 e a OTAN, em 1995, por meio de bombardeios. Os Estados Unidos impuseram um cessar-fogo, mas a Rússia estava muito enfraquecida após o colapso da URSS e não pôde intervir. Houve também a guerra do Kosovo entre 1998 e 1999, quando a OTAN bombardeou a Sérvia.
Como explicar este conflito entre a Rússia e a Ucrânia?
As origens da guerra na Ucrânia estão ao mesmo tempo no retorno do poder russo e no avanço da OTAN. Após o afastamento gradual de seus antigos “protetorados”, as ex-repúblicas socialistas que aderiram à União Europeia, a Rússia está tentando recuperar o controle. Ela conseguiu esse controle depois de uma repressão brutal na Chechênia. E, ainda que tenha falhado na Geórgia, ela anexou a Crimeia, apoiando a população de origem russa do Donbas ucraniano. Além disso, ela se sente ameaçada pelo alargamento da OTAN nessas regiões, que contraria a promessa feita a Gorbachev em 1991. E nada foi feito para encontrar um compromisso diante da radicalização que levou à invasão da Ucrânia.
A Ucrânia também guarda a trágica memória da ditadura stalinista?
Em 1931, Stalin deportou ou liquidou os kulaks, os camponeses que se estabeleceram nos ricos campos de trigo ucranianos. Os ucranianos tiveram que enfrentar uma fome terrível.
Hoje, a Ucrânia está dividida entre Oriente e Ocidente?
A Ucrânia é uma presa econômica formidável para o Oriente e para o Ocidente. É rica em matérias-primas, com minérios, campos de trigo, etc. Está dividida entre a sua pertença histórica ao Império Russo e a sua aspiração à democracia, que a liga cada vez mais ao resto da Europa. Nos encontramos numa situação paradoxal: ao mesmo tempo não aceitar a invasão e não ir à guerra.
Por que Vladimir Putin fala de “desnazificação” da Ucrânia?
Esta acusação não pode ser entendida sem uma referência histórica. Quando os alemães atacaram a URSS em 1941, um movimento nacionalista liderado por Stepan Bandera proclamou, sob a autoridade dos nazistas, uma Ucrânia independente. A situação atual obviamente não tem nada a ver com isso e essa história é manipulada politicamente por Vladimir Putin, sugerindo que a situação política na Ucrânia hoje seria a mesma que prevaleceu sob os nazistas.
Nós não perdemos algo após o colapso da “Cortina de Ferro”?
Putin é, obviamente, um ditador que condenamos. No entanto, penso que esta história é também o resultado de duas dinâmicas. Por um lado, a OTAN, sob o controle dos americanos, quer avançar o máximo possível em direção à Rússia. Esta última, por sua vez, quer reconstituir a velha Rússia. Essas tensões foram pacíficas até se transformarem na tragédia que conhecemos hoje.
Isso nos traz de volta às áreas de influência das grandes potências. Pense em Cuba ou na América Latina, em sua relação com os americanos, por exemplo. Podemos defender a Ucrânia sem ser cegos. Temos que ter cuidado com a histeria ligada à guerra que nos faz ver apenas um aspecto da realidade, que muitas vezes é mais complexa. Eu sempre procurei tomar partido com lucidez.
O que mais podemos esperar?
Encontramo-nos numa situação paradoxal: tanto não aceitar a invasão como não fazer a guerra. Daí o tipo de compromisso que é a guerra econômica, acompanhada de ajuda em armamentos. Nem a força militar nem a fraqueza são uma solução. A fraqueza é perigosa porque pode dar liberdade às ambições imperiais russas. Mas o desejo de dobrar a economia da Rússia é igualmente perigoso e pode ter consequências que não podemos medir.
O único compromisso aceitável para os três lados é a neutralidade da Ucrânia no modelo suíço. Parece-me que a Ucrânia, despojada ou não de sua região de língua russa, deveria se tornar um estado federal, dados seus vários componentes étnico-religiosos. E que uma negociação geral pode levar a um acordo Leste-Oeste. Mas isso é apenas um desejo. É preciso fazer um diagnóstico correto do homem no mundo e na história atual.
Há dois anos, em Montpellier, você disse: “Não estou resignado”. Você ainda é um homem de esperança?
Eu tenho três princípios de esperança quando as probabilidades são desesperadas ou a tirania triunfa. A primeira é apostar no improvável, que conheci quando o general Júkov, comandante-chefe de Stalin, salvou Moscou em dezembro de 1941, quando a URSS parecia perdida. Dois dias depois, os Estados Unidos entraram na guerra após o ataque do Japão a Pearl Harbor. Essa esperança, encontrei-a novamente quando o herdeiro do ditador Franco, Juan Carlos, restabeleceu a democracia na Espanha. E, finalmente, quando o secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Gorbachev, acabou com setenta anos de totalitarismo.
Também tenho o segundo princípio de sempre acreditar nas capacidades criativas e na resistência à opressão de uma minoria que, mais cedo ou mais tarde, consegue se emancipar, como Mandela fez.
E meu terceiro princípio é acreditar que mesmo o pior sistema totalitário do futuro, baseado no controle computadorizado generalizado de todos os indivíduos, sempre terá falhas, como nos mostra o filme Matrix. A grande máquina totalitária poderá nos transformar parcialmente em máquinas. Mas algumas pessoas sempre surgirão para salvar o mundo.
Devemos nos indignar como Stéphane Hessel nos convidou a fazê-lo (Indignez-vous, edições Indigènes, 2010)? Ou nos engajar?
Eu diria que você também tem que pensar. Não basta ficar indignado ou se engajar. Você tem que saber em que mundo estamos. Isso é o que todos os grandes pensadores, como Karl Marx, mesmo que tivessem errado, queriam fazer. É necessário fazer um diagnóstico correto do ser humano no mundo e na história atual. Antes do compromisso, antes da indignação, é preciso entender.
Por que a identidade francesa está atualmente em debate?
Desde a Revolução de 1789, duas Franças se alternaram ou coexistiram: a França humanista, nascida em 1789 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, e a França reacionária. Elas ainda se chocam hoje. Na década de 1930, a França reacionária se encontrou em Charles Maurras, um doutrinário que justificava uma visão hipernacionalista, na época antissemita, xenofóbica. Ora, Zemmour é o Maurras de hoje. Sua base é o pior de todos os nacionalismos. Ela nos remete à limpeza étnica e religiosa dos imigrantes e do Islã. Isso é o que é fundamentalmente reacionário com um suprematismo inconsciente ou consciente. A ideia de que somos superiores.
É também uma visão muito nostálgica?
Atualmente a França é uma potência média. Mas foi uma grande potência, agora suplantada pelos Estados Unidos, China e Rússia. Para os partidários dessa França reacionária que cultivam essa nostalgia, foram as ideias da França humanista que levaram a esse declínio histórico.
Que projeto poderia engajar o francês hoje?
Defini em meu livro Changeons de voie: Les leçons du coronavirus (“Mudemos de caminho: as lições do coronavirus” em tradução literal) (em coautoria com Sabah Abouessalam, edições Denoël, 2020) uma política em que a economia é colocada a serviço de um desejo de recriar, de melhorar nossa civilização e nossas condições de vida. É uma política que reduziria o agora onipotente poder do dinheiro e também o caráter burocrático do Estado. Se essa direção não for seguida por grande parte da opinião pública, não haverá o despertar da França humanista ou da França em geral.
Quem pode encarnar este despertar?
Não vejo ninguém no momento. Seria preciso que o presidente Macron mudasse de rumo. Por enquanto, nada indica isso. Tivemos Joana d’Arc, Charles de Gaulle. Sem ir tão longe nestas referências, precisamos de alguém que encarne este caminho.
E o retorno à convivialidade de que fala no seu último livro, onde está?
O que me preocupa é a deterioração não só da nossa vida cotidiana, mas também da solidariedade. Assistimos a uma progressão na mecanização da vida – eu diria mesmo que à industrialização das nossas vidas pessoais. Vivemos constrangimentos cada vez mais burocráticos, comemos alimentos insalubres e industrializados. Mas há muitas coisas que podem ser ressuscitadas, porque há uma aspiração humana pela convivialidade e acredito que essa aspiração renascerá constantemente.
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